terça-feira, 26 de março de 2019

O racismo da minha cor e a gordofobia do meu corpo

Descrição para cegos: Nesta imagem Carol está de perfil, cabelo solto e olha fixamente para a câmera. Foto: Michelly Santos.


Por Michelly Santos

       Ressignificar a existência do corpo e da funcionalidade dele é um desafio para os que estão imersos em um modo constante e instantâneo da perfeição já fabricada. A construção do padrão de feminilidade, alinhada à estética, em particular, é massivamente baseada na beleza eurocêntrica, branca e magra, a qual é comprada e endeusada por mecanismos capitalistas e de higienização racial.


    Tudo que foge a esses parâmetros excludentes são marginalizados, hipersexualizados e negligenciados, o que contribui para que mulheres negras e gordas, com sua interseccionalidade vívida, sofram no cotidiano por meio de atitudes racistas e gordofóbicas. Sendo privadas e desmerecidas por pessoas e um sistema o qual acomete atitudes miúdas, mas quando somadas, tornam-se gigantescas.

       Traz consequências e cicatrizes difíceis de desinflamar, de serem fechadas totalmente, pois sempre existirá um gatilho, uma lembrança, uma “brincadeira” que põe em xeque tudo o que viveram, mas ainda está ali, presente, esperando uma brecha para aparecer.

     Carol Figueiredo é de serra talhada, interior de Pernambuco, terra de cultura viva, igual a expressividade que ela carrega com seus 19 anos de idade. Estudante de Jornalismo da UFPB, se sente feliz e realizada por conquistar espaço na universidade e cursar o que sempre sonhou.

     Ela sabe da importância da existência do seu corpo. Ele é político! A negritude de Carol é o seu próprio lar, e o corpo dela é o que sustenta todos os sonhos que a faz enfrentar os percalços diários. Porém, nem sempre foi assim e ainda continua sendo difícil, lidar com as lacunas abertas desde a infância e que ainda não foram preenchidas.


A gordofobia e o racismo quando criança


“Eu percebi que era negra desde pequena, com comentários e falta de representatividade na TV e na mídia em geral. Na escola, sempre me chamava de neguinha de uma forma pejorativa.”

       Revisitar as lembranças da infância da Carol nos traz detalhes de uma época, não tão distante, em que o racismo era e, infelizmente, continua sendo, aprendido em contextos sociais diferentes e perpetuado de forma cruel; na escola, redes sociais, universidades, ou em qualquer ambiente de convívio humano.

       Contudo, as ofensas e privações no cotidiano da pernambucana foram além do racismo.  Os danos acometidos à ela por causa da cor, das origens e da ancestralidade, posaram também em críticas ao corpo gordo da infância e adolescência. “Eu acho que percebi que era gorda e isso como um problema, bem antes de eu me perceber negra. Desde que me entendo por gente, não lembro uma vez na minha vida que eu estava de boa com o meu corpo. Que podia comer uma pizza, um hambúrguer, ou, sei lá, uma fruta sequer, sem pensar que estou fazendo isso pra engordar ou para emagrecer. Nunca comer, pra mim, foi uma coisa fácil.”

        Ela continua sentindo vergonha de comer em público, por uma constante sensação de a julgarem. Se for algo mais gorduroso; pode ser atribuído à estudante o papel da gorda fazendo “gordice”, e se for algo saudável; será, sem dúvida, percebida como a gorda que está lutando contra a obesidade.

      O que acontece com Carol é um dos instrumentos estrutural da gordofobia. São atitudes mínimas, porém quando edificadas de forma forte na mente de quem convivem com esses dilemas, podem ser transformadas em empecilhos diários.  O que torna um ato tão simples de ser feito, algo nitidamente complicado para ela. Toda essa questão, fez com que brigasse com o seu peso. Lutar desde sempre com a menina gorda a qual não conseguia amar e fazer coisas mínimas por vergonha de ser quem era.

       Quando retornava das férias escolares, era sempre elogiada por estar mais magra, por ter perdido, sei lá, dez quilos. Todo esse evento criado pelo os outros ecoava de forma muito destrutiva na cabeça daquela criança. Mal sabiam que, toda essa romantização da magreza, deu combustível aos vômitos forçado de anos a fio, ao isolamento em seu quarto durante as férias, e a privação de uma vida social. “Tiveram algumas momentos da minha vida que eu consegui emagrecer, as pessoas sempre me diziam: nossa Carol, como você está linda. Isso não era uma coisa que me deixava feliz. Isso não é uma coisa boa para mim, não é elogio.”

       O peso perdido nas férias tinha sido consequência da tristeza e dos distúrbios alimentares, os quais a deixou doente. Mas talvez essa parte da história, se contada para os que a elogiavam, não fosse tão importante ou significativa visto que a magreza, mesmo vindo por doenças, ainda é muito aplaudida pela sociedade.



O medo de não se encaixar
Descrição para cegos: Foto em preto e branco mostra o rosto de Carol de perfil. A imagem foca na boca; que está fechada, no nariz e nos olhos da estudante. Foto: Michelly Santos.


      
        A falta de acessibilidade nos lugares e para comprar roupa, fez com a estudante de Jornalismo criasse, ainda mais, uma relação de indiferença com o seu corpo. Atualmente, Carol tem trinta quilos a menos. Mas fala que o temor a possibilidade de não passar em uma catraca de ônibus e ser motivo de piada, as mesmas que a fizeram odiar o seu corpo durante toda vida, e não achar uma numeração para o seu tamanho, ainda é motivo de desânimo.

        Os frequentes elogios por ela ter emagrecido, traz a insatisfação de quando era criança e voltava das férias. Ela quer ser reconhecida não por seu peso; mas pela sua capacidade intelectual, por correr atrás dos seus sonhos, por está realizando, conquistando e ocupando o que antes era inviável como mulher negra.

        Confessa que fica triste por aqueles que estão próximos dela a enxergarem de forma tão distante suas conquistas e darem mais valor as mudanças físicas. ”É como se minha beleza fosse associada diretamente ao meu corpo e não ao meu intelecto, a pessoa que eu sou, sabe?! E muito pelo o contrário, quando as pessoas acham que estão fazendo bem pra mim, elas não estão, elas estão me deixando pior.”

        Após o último emagrecimento de Carol houve mudanças em vários sentidos, já entrando na fase adulta, a sociedade se mostrou muito condizente com seu discurso e acolhimento seletivo. “As pessoas estão me tratando melhor, às vezes eu acho que é paranoia minha, mas não é, é bem real. Estão sendo mais gentis, sei lá, não sei explicar.  Me tratam como se isso fosse uma vitória. Como se fosse o centro do universo. É muito triste porque eu estou fazendo faculdade, estagiando, feliz porque estou seguindo meu sonho, mas ninguém vem me dar parabéns porque tô na faculdade e consegui estágio no primeiro período.”


A representatividade como rede de apoio
Descrição para cegos: Essa imagem representa a união por meio da representatividade de duas mulheres negras. Na foto aparece Iasmin Soares faz uma trança no cabelo de Carol. A estudante Pernambucana está sorrindo e de olhos fechados. Foto: Michelly Santos.


       O primeiro contato de Carol com o feminismo foi com a Beyoncé, quando a cantora lançou o disco: BEYONCÉ. A música Flawless, chamou a atenção de Carol por conter letra forte de empoderamento feminino. A identificação veio de cara, uma porta se abriu, o reconhecimento se fez presente. A canção é um mix de delegação de poder e beleza, seja ela qual for.

“Feminista: uma pessoa que acredita na igualdade social, política
E econômica entre os sexos “

“Você acorda, perfeita.
Bota a cara no sol, perfeita.
Anda por aí, perfeita
Se exibe, perfeita
Este diamante, perfeito...”

“Acordei assim, acordei assim
Somos perfeitas, garotas, contem a eles…”

       Depois de saber da existência do movimento e descobrir mais sobre ele, a estudante teve contato com o feminismo negro e começou a entender as diversas vertentes que o compõe. Com a ajuda do Coletivo Fuá, da sua cidade Natal, Serra Talhada; grupo que nasceu inicialmente com o objetivo de incentivar as mulheres a aceitarem os fios, que são tão marginalizados, principalmente os cabelos crespos. Contudo, surgiu uma necessidade de levantar pautas com cunho social. Hoje elas tratam de racismo e feminismo negro no interior de Pernambuco.

       Foi essencial para Carol o contato com vivências parecidas com as suas, fazendo com que ela se visse representada de maneira com a qual talvez nunca tivera se percebido. A visibilidade ajuda não somente na parte estética, mas também de autossuficiência.

       Tratar as questões de beleza e insegurança, as quais sempre fizeram parte da vida dela, foi necessária e muito importante. “O feminismo negro, me mostrou que eu não sou um artefato masculino. Mas que eu sou um ser humano, tenho poder, tenho fala, tenho voz e tenho vez. Me ajudou muito em todos os aspectos.”

       Canalizar nosso olhar cotidianamente não é uma tarefa fácil. Aprender sobre a autenticidade de ser quem somos e fazer disso uma tarefa para mudar muitos dos conceitos tóxicos já construídos na sociedade é revolucionário.



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