sábado, 30 de março de 2019

Marielle, semente: quando a perda reverbera em luta

Descrição para cegos: Na imagem Marielle Franco aparece da cintura para cima, com um vestido colorido, de estampas florais. Ao fundo da vereadora, há uma favela desfocada. Ela está sorrindo.



Por Ana Beatriz Rocha



Todos os dias a tv exibe notícias sobre vida que deixou de ser vida e partiu daqui sem dizer adeus. Dia após dia são tiros, facas, acidentes, catástrofes naturais. Todos os dias morrem, e todos os dias matam. As ruas pareciam mais cinzas dia 14/03, asfalto quente, cidade erma. A atmosfera se preparava para um silêncio sepulcral, depois das 21h algo acabaria ali. Algo iria sem data de retorno, carta de despedida ou um mísero porquê.

Ela se foi.

Homens perversos a cercaram como quem traz de longe uma sentença de fim. Treze disparos, quatro a acertam. Cabeça e pescoço. O cheiro fétido de um sangue que jorra todos os dias no asfalto das favelas, um sangue barato e já conhecido dos piores homens do país. Com as mãos sujas eles se vão, sem a culpa da vida usurpada. No dia seguinte, todos sabem teu nome, todos procuram razões.

Sentidos.

Tu carregava nas costas a infância na periferia, pelas ruas da Maré, tu, menina, caminhava com os sonhos nas mãos, e as opressões tentando vendar seus olhos, e impedir seu caminho. Fosse em linha reta como quem o passado não vê, correndo pelo amanhã que em vitória chegaria.

Aos 11 as barbies deram lugar ao trabalho. Preta e pobre, aos pais tinha de ajudar, a casa tinha de alimentar.

Persistiu.

A luz viria ser dada aos 19, de ti nasceu Luyara, a quem tu ensinaria que a mulher preta tem como sobrenome luta, a cabeça erguida e o peito ardendo em chamas para as amarras do machismo e racismo queimar.

Me pergunto qual sentimento tu nutria ao se ver vencendo as estatísticas, diuturnamente. Entrou na academia, gritaram: olha lá, uma favelada cientista, uma cientista favelada. E tu assentiu, não negou raízes, as fincou no terreno dos opressores e fez brotar as sementes de uma jornada de amor.

Amor proibido.

Numa soma de interseccionalidades teu amor fez morada numa mulher. Visceralidade afetiva, desde cedo uma da outra, enquanto o mundo as interrompia com mandos e desmandos de quem desconhece que o afeto genuíno não se restringe a heteronormatividade. Até hoje tua Monica chora tua partida, até aqui te declara amor como quem não largará jamais a mão de quem a pediu em casamento contrariando todas as declarações de ódio a corpos que só estavam sendo corpos reais, sem se importar com impressões alheias. Foi ao lado dela que o grito de vitória política veio, interno, agudo e com um eleitorado sussurrando: finalmente, ela chegou lá.

Ela entre eles.

Se fazendo presente e urgente tu chegou a câmara, pautas palpáveis para os que são sempre esquecidos. Levou junto mães solo, os jovens pretos e afetados pela lógica tirana do capital. Reivindicou contra a intervenção militar que mais corpos pretendia estirar, apontou o dedo ao Estado genocida para cuspir na cara que a violência policial tinha que acabar. Tua voz era incessante, desassossego das milícias, defendia até integrantes da polícia, que também vítimas do sistema perdem sua humanidade em prol de aprisionar existências dominadas. Cada fala era uma abraço, fazia de plenárias quilombos, onde teu povo tinha orgulho de se ver sendo lembrado e representado.

Memórias.

Após a partida tu merecia flores, mas alguns te jogaram coroas de espinhos. Caluniaram a preta que nada de mau havia feito. Sim, a carne negra é a mais barata até depois de morta. Tais chorumes, dejetos humanos foram capazes de tentar apodrecer teu nome nos tabloides. Não vingaram. Teu povo se ergueu feito tropa, que jamais deixaria nossa valente guerreira ser lembrada por menos do que a imensidão que foi em vida. E é na morte.

Saudade.

Seu rosto estampa bandeiras, seu nome placas azuis que remetem a nomeação de ruas, pois te queremos liderando nossas jornadas. Nossa gente te acende velas, clamando aos nossos ancestrais para que guiem teus caminhos não terrenos. Um pedaço de cada um de nós se foi junto a ti, tu era tantas e tantos, tu era o grito que há tempos vinha calado e hoje é latente. Presente, tal qual tu, Marielle.

Tu é semente, e nós ansiamos pela colheita. Quando a emancipação real chegar, teu nome estará estampado em faixas e cartazes de comemoração. Gratidão.

Com amor, teu Brasil preto. 

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