quinta-feira, 21 de março de 2019

Apropriação do mundo negro e folclorização da afrocultura


Descrição para cegos: Montagem de Iemanjá, a esquerda uma Iemanjá negra, remetendo a real representação da cultura africana. A direita uma Iemanjá branca no meio do mar, representando o produto do sincretismo religioso.


Por Ana Beatriz Rocha


É inegável que estamos no olho de um furacão tecnológico que, por vezes, parece que só faz assimilar ou excluir indivíduos, se baseando no quão atentos ou interessados estão sobre das principais discussões no âmbito digital. Me permito uma licença poética para dizer que o Brasil sempre foi um país “metido a besta”, do tipo que se importa muito com a imagética que os de fora construirão sobre ele. E pode ter certeza, a construção da autoimagem da população não ficaria ilesa diante disso.


Assim, em tempos de retoques infinitos nas imagens, abusando de Facetune e afins, estamos cada dia mais pondo a questão estética como pauta central. No caso do segmento negro isso não é um fator negativo, de jeito nenhum. Nos últimos anos, cresceu de forma exponencial a quantidade de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, as quais, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), fazem parte do grupo dos negros. Dessa forma, podemos falar do surgimento de um orgulho relacionado a identidade negra, que após anos sendo rechaçada, vem sendo lindamente cultivada por muitos indivíduos desse grupo social. É nesse sentido que bater na tecla do autoamor e do afirmar nossa identidade é tão importante, galera.

Em contrapartida, desde o início do desenvolvimento civilizatório no Brasil, há o fator oportunismo de classe. Trata-se da permanente tentativa das classes dominantes de, além de oprimirem determinados grupos e os subalternizarem, eles usufruem de aspectos que lhes parecem interessantes, geralmente culturais, desses grupos. A apropriação cultural se dá quando indivíduos utilizam objetos pertencentes a uma cultura inferiorizada pela sociedade, recebendo apenas o bônus da questão estética, sem o ônus de ser integrante do segmento social marginalizado. Por isso, não se trata apenas de utilizar adereços de outra comunidade cultural, mas sim do esvaziamento do peso que determinados objetos, peças e estilos carregam. É o caso do que tem acontecido com a cultura negra, quando pessoas brancas utilizam vestimentas, penteados, turbantes e afins, sem afirmar ou conhecer a luta e resistência que tais objetos carregam, os reduzindo à moda e estética, e o famoso hype.
É nesse momento que a folclorização se une a apropriação. Como sabemos, o capitalismo transforma questões identitárias em itens de consumo. Ao passo que a valorização da afrocultura está sendo um tema amplamente discutido, nada mais comum, para o mercado, que tirar proveito disso. Com isso, itens representativos no que tange o chão histórico de um povo, com sentido afetivo, religioso e até mesmo político, sofrem apagamento. Desse modo, a afrocultura surge como capital simbólico para os grupos dominantes. É preciso falar de blackmoney e reconhecer que muitos fatores que apontamos como representatividade é, na verdade, interesse financeiro.
A folclorização se traduz na fetichização da cultura, ao transformá-la em objeto de exportação, como é o caso dos corpos negros no carnaval. Muito se fala nas pesquisas sobre o assunto acerca da figura mulata exportação, que seria a mulher negra de pele clara, traços finos e silhueta curvilínea, o ideal da miscigenação genocida aplicada no Brasil. Essa imagem é vendida sexualizando a mulher negra, reduzindo-a a objeto de desejo dos gringos interessados em “conhecer o que há de bom” da cultura brasileira. Além disso, outra personagem folclorizada é a baiana. Para tratar dela farei alusão ao escritor, além de ativista dos direitos civis e humanos das populações negras, Abdias Nascimento.
Abdias traz em uma das suas principais obras, O genocídio do Negro Brasileiro, um capítulo sobre a folclorização das religiões de matriz africana no chamado “sincretismo religioso”. Sabe-se que a manipulação é um fator preponderante para que, em pleno século XXI, muitos ainda acreditem no mito da “democracia racial” no Brasil. Porém, não se trata de um acaso, ou mero descaso referente ao imaginário brasileiro, mas sim de uma minuciosa dominação na construção do pensamento - pseudo - crítico no tocante às relações raciais.
O autor cita que o também escritor Roger Bastide afirmou que o sincretismo africano-católico foi uma forma de defesa e persistência encontrada pelas religiões afro, pois os africanos se viam obrigados a cultuar os santos católicos, mas em seu interior guardavam os orixás. No entanto, esse mesmo sincretismo também foi utilizado pelos algozes para acorrentar não apenas os corpos, mas também os espíritos dos escravos.
Ao longo da história, essa que foi contada sob a perspectiva dos brancos europeus, os colonizadores negaram que os cultos, a filosofia, as liturgias religiosas e as artes africanas fossem fatores constitutivos da identidade nacional, impugnando o nosso povo uma rejeição étnica. O colonizador definiu sua “fé” como suprema, a medida que subjulgava as demais pois, para ele, a religiosidade também é um projeto de poder. Vamos assumir? Deve ser mesmo um incômodo imenso perceber que há povos que vivem suas crenças espirituais de modo genuíno, sem interesses relacionados ao capital.
No entanto, para dormirem sob o manto sagrado e confortável da democracia racial, chamaram a folclorização de sincretismo, pois afirmam que havia uma tolerância ao permitir que alguns costumes africanos fossem mantidos, contanto que a fé professada fosse a católica. Quando na verdade sabemos que tal permissividade era uma forma de evitar levantes e possíveis revoltas. Assim, a imagem da baiana que é tão cultivada como personagem positiva e marca da cultura brasileira, nada mais é que o capitalismo tornando rentável uma figura que os colonizadores tanto oprimiram ao ponto delas possuírem apenas um lugar pré-estabelecido, o de alegoria.
Por isso temos que ficar atentas e atentos ao desmantelamento e divisionismo que apropriação cultural pode causar. Não sejamos hipócritas, é inevitável que numa sociedade globalizada como a nossa muitos costumes e estilos se interseccionem ao longo dos anos. Porém, deve-se haver o respeito a determinados aspectos de culturas que foram historicamente oprimidas, pois, na maioria das vezes, o que para muitos é acessório, para nosso povo é símbolo de resistência.


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