Descrição para cegos:
Nesta imagem Carol está de perfil, cabelo solto e olha fixamente para a câmera.
Foto: Michelly Santos.
Por Michelly Santos
Ressignificar
a existência do corpo e da funcionalidade dele é um desafio para os que estão
imersos em um modo constante e instantâneo da perfeição já fabricada. A
construção do padrão de feminilidade, alinhada à estética, em particular, é
massivamente baseada na beleza eurocêntrica, branca e magra, a qual é comprada
e endeusada por mecanismos capitalistas e de higienização racial.
Tudo que
foge a esses parâmetros excludentes são marginalizados, hipersexualizados e
negligenciados, o que contribui para que mulheres negras e gordas, com sua
interseccionalidade vívida, sofram no cotidiano por meio de atitudes racistas e
gordofóbicas. Sendo privadas e desmerecidas por pessoas e um sistema o qual
acomete atitudes miúdas, mas quando somadas, tornam-se gigantescas.
Traz
consequências e cicatrizes difíceis de desinflamar, de serem fechadas
totalmente, pois sempre existirá um gatilho, uma lembrança, uma “brincadeira”
que põe em xeque tudo o que viveram, mas ainda está ali, presente, esperando
uma brecha para aparecer.
Carol
Figueiredo é de serra talhada, interior de Pernambuco, terra de cultura viva,
igual a expressividade que ela carrega com seus 19 anos de idade. Estudante de
Jornalismo da UFPB, se sente feliz e realizada por conquistar espaço na
universidade e cursar o que sempre sonhou.
Ela sabe
da importância da existência do seu corpo. Ele é político! A negritude de Carol
é o seu próprio lar, e o corpo dela é o que sustenta todos os sonhos que a faz
enfrentar os percalços diários. Porém, nem sempre foi assim e ainda continua
sendo difícil, lidar com as lacunas abertas desde a infância e que ainda não
foram preenchidas.
A gordofobia e o racismo quando criança
“Eu
percebi que era negra desde pequena, com comentários e falta de
representatividade na TV e na mídia em geral. Na escola, sempre me chamava de
neguinha de uma forma pejorativa.”
Revisitar
as lembranças da infância da Carol nos traz detalhes de uma época, não tão
distante, em que o racismo era e, infelizmente, continua sendo, aprendido em
contextos sociais diferentes e perpetuado de forma cruel; na escola, redes
sociais, universidades, ou em qualquer ambiente de convívio humano.
Contudo,
as ofensas e privações no cotidiano da pernambucana foram além do racismo.
Os danos acometidos à ela por causa da cor, das origens e da
ancestralidade, posaram também em críticas ao corpo gordo da infância e
adolescência. “Eu acho que percebi que era gorda e isso como um problema, bem
antes de eu me perceber negra. Desde que me entendo por gente, não lembro uma
vez na minha vida que eu estava de boa com o meu corpo. Que podia comer uma
pizza, um hambúrguer, ou, sei lá, uma fruta sequer, sem pensar que estou
fazendo isso pra engordar ou para emagrecer. Nunca comer, pra mim, foi uma
coisa fácil.”
Ela
continua sentindo vergonha de comer em público, por uma constante sensação de a
julgarem. Se for algo mais gorduroso; pode ser atribuído à estudante o papel da
gorda fazendo “gordice”, e se for algo saudável; será, sem dúvida, percebida
como a gorda que está lutando contra a obesidade.
O que
acontece com Carol é um dos instrumentos estrutural da gordofobia. São atitudes
mínimas, porém quando edificadas de forma forte na mente de quem convivem com
esses dilemas, podem ser transformadas em empecilhos diários. O que torna
um ato tão simples de ser feito, algo nitidamente complicado para ela. Toda
essa questão, fez com que brigasse com o seu peso. Lutar desde sempre com a menina
gorda a qual não conseguia amar e fazer coisas mínimas por vergonha de ser quem
era.
Quando
retornava das férias escolares, era sempre elogiada por estar mais magra, por
ter perdido, sei lá, dez quilos. Todo esse evento criado pelo os outros ecoava
de forma muito destrutiva na cabeça daquela criança. Mal sabiam que, toda essa
romantização da magreza, deu combustível aos vômitos forçado de anos a fio, ao
isolamento em seu quarto durante as férias, e a privação de uma vida social. “Tiveram
algumas momentos da minha vida que eu consegui emagrecer, as pessoas sempre me
diziam: nossa Carol, como você está linda. Isso não era uma coisa que me
deixava feliz. Isso não é uma coisa boa para mim, não é elogio.”
O peso
perdido nas férias tinha sido consequência da tristeza e dos distúrbios alimentares,
os quais a deixou doente. Mas talvez essa parte da história, se contada para os
que a elogiavam, não fosse tão importante ou significativa visto que a magreza,
mesmo vindo por doenças, ainda é muito aplaudida pela sociedade.
O medo de
não se encaixar
Descrição para cegos:
Foto em preto e branco mostra o rosto de Carol de perfil. A imagem foca na
boca; que está fechada, no nariz e nos olhos da estudante. Foto: Michelly
Santos.
A falta
de acessibilidade nos lugares e para comprar roupa, fez com a estudante de
Jornalismo criasse, ainda mais, uma relação de indiferença com o seu corpo.
Atualmente, Carol tem trinta quilos a menos. Mas fala que o temor a
possibilidade de não passar em uma catraca de ônibus e ser motivo de piada, as
mesmas que a fizeram odiar o seu corpo durante toda vida, e não achar uma
numeração para o seu tamanho, ainda é motivo de desânimo.
Os frequentes elogios por ela ter emagrecido,
traz a insatisfação de quando era criança e voltava das férias. Ela quer ser
reconhecida não por seu peso; mas pela sua capacidade intelectual, por correr
atrás dos seus sonhos, por está realizando, conquistando e ocupando o que antes
era inviável como mulher negra.
Confessa que fica triste por aqueles que
estão próximos dela a enxergarem de forma tão distante suas conquistas e darem
mais valor as mudanças físicas. ”É como se minha beleza fosse associada
diretamente ao meu corpo e não ao meu intelecto, a pessoa que eu sou, sabe?! E
muito pelo o contrário, quando as pessoas acham que estão fazendo bem pra mim,
elas não estão, elas estão me deixando pior.”
Após o último emagrecimento de Carol
houve mudanças em vários sentidos, já entrando na fase adulta, a sociedade se
mostrou muito condizente com seu discurso e acolhimento seletivo. “As pessoas
estão me tratando melhor, às vezes eu acho que é paranoia minha, mas não é, é
bem real. Estão sendo mais gentis, sei lá, não sei explicar. Me tratam como se isso fosse uma vitória. Como se fosse o
centro do universo. É muito triste porque eu estou fazendo faculdade,
estagiando, feliz porque estou seguindo meu sonho, mas ninguém vem me dar
parabéns porque tô na faculdade e consegui estágio no primeiro período.”
A representatividade como rede de apoio
Descrição para cegos:
Essa imagem representa a união por meio da representatividade de duas mulheres
negras. Na foto aparece Iasmin Soares faz uma trança no cabelo de Carol. A
estudante Pernambucana está sorrindo e de olhos fechados. Foto: Michelly Santos.
O primeiro contato de Carol com o feminismo foi com a Beyoncé,
quando a cantora lançou o disco: BEYONCÉ. A música Flawless, chamou a
atenção de Carol por conter letra forte de empoderamento feminino. A
identificação veio de cara, uma porta se abriu, o reconhecimento se fez presente.
A canção é um mix de delegação de poder e beleza, seja ela qual for.
“Feminista: uma pessoa que acredita na igualdade social, política
E econômica entre os sexos “
“Você acorda, perfeita.
Bota a cara no sol, perfeita.
Anda por aí, perfeita
Se exibe, perfeita
Este diamante, perfeito...”
“Acordei assim, acordei assim
Somos perfeitas, garotas, contem a eles…”
Depois de saber da existência do movimento e descobrir mais sobre
ele, a estudante teve contato com o feminismo negro e começou a entender as
diversas vertentes que o compõe. Com a ajuda do Coletivo Fuá, da sua cidade
Natal, Serra Talhada; grupo que nasceu inicialmente com o objetivo de
incentivar as mulheres a aceitarem os fios, que são tão marginalizados,
principalmente os cabelos crespos. Contudo, surgiu uma necessidade de levantar
pautas com cunho social. Hoje elas tratam de racismo e feminismo negro no
interior de Pernambuco.
Foi essencial para Carol o contato com vivências parecidas com as
suas, fazendo com que ela se visse representada de maneira com a qual talvez
nunca tivera se percebido. A visibilidade ajuda não somente na parte estética, mas
também de autossuficiência.
Tratar as questões de beleza e insegurança, as quais sempre
fizeram parte da vida dela, foi necessária e muito importante. “O feminismo
negro, me mostrou que eu não sou um artefato masculino. Mas que eu sou um ser
humano, tenho poder, tenho fala, tenho voz e tenho vez. Me ajudou muito em
todos os aspectos.”
Canalizar nosso olhar cotidianamente não é uma tarefa fácil.
Aprender sobre a autenticidade de ser quem somos e fazer disso uma tarefa para
mudar muitos dos conceitos tóxicos já construídos na sociedade é revolucionário.
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