Por Ana Beatriz Rocha
“Quem
não gosta de samba, bom sujeito não é
É
ruim da cabeça, ou doente do pé”
Dentre os diversos estereótipos
que a comunidade internacional limita aos brasileiros, um bem marcado é o
samba. Apontado como constitutivo da identidade nacional, o ritmo carrega
consigo a mais pura originalidade brasileira, pois foi em solo tupiniquim que
nasceu esse marco cultural que vai além da conhecida sonoridade.
Em tempos onde a escravidão ainda
era plano de fundo da história do país, através dos africanos escravizados no
Brasil, um novo gingado surgia. A Bahia foi o berço do ritmo que veio dos batuques
e do jongo, trazidos de Angola e do Congo pelos negros que foram covardemente
arrancados de seus países para serem subjugados no Brasil. Com influência de
elementos religiosos, tinha origem numa comunicação ritualística, onde cultura
e espiritualidade se fundiram numa cadência poética que geraria o mais famoso
ritmo musical brasileiro.
“Somos
herança da memória
Temos
a cor da noite
Filhos
de todo açoite
Fato
real de nossa história”
Identidade
- Jorge Aragão
O mais tradicional é o samba de
roda, que num misto de palmas, coro e instrumentos de percussão fez surgir um
som divertido e dançante, onde um círculo de instrumentistas homens se abria em
volta de uma mulher que dançaria e trocaria seu protagonismo com as outras que
da roda faziam parte.
No século 19, após o Rio de
Janeiro ter se tornado capital do Brasil, muitos africanos escravizados foram
mandados da Bahia, e de outros lugares do país, para a então capital, devido às
reconfigurações econômicas que a mudança desencadeou. Com isso, havia um
aglomerado de religiões iorubás num só lugar, e ao batuque foi se incorporando
o maxixe e a polca, dando origem às conhecidas rodas de samba dos morros
cariocas. Após a invenção do rádio, em meados da década de 1920, o samba chegou
às elites do Rio. Com isso, ele foi assimilado pela indústria fonográfica e por
artistas brancos de muito longe dos morros.
É comum citarem nomes como Noel Rosa e Beth Carvalho para lembrar do
samba, mas é na memória de Cartola, Nelson Cavaquinho e Pixinguinha e, na
contemporaneidade, Alcione, que as raízes dos morros pretos são ressaltadas e
os muitos sambas, que não vieram de um só lugar, são tocados como se ainda
estivessem em casa. A mãe África, genitora do balanço envolvente que deu vazão
a pluralidade nos saúda quando o sambista de melanina acentuada dá o primeiro
repique, reverenciando seus ancestrais.
Os batuques saudaram Cartola, morador do Morro da Mangueira e
compositor do primeiro samba-enredo da escola de samba Estação Primeira de
Mangueira, “chega de demandas”. Muitos dos seus sambas cantam a dor de um amor
naufragado, o amor preto que não vingou. Não foi uma sina só de Cartola
retratar tal dor em suas letras, e essa narrativa ainda emociona por ser tão
cotidiana nos dias atuais. Devido ao fato de terem tido as constituições
amorosa e familiar ceifadas pelos grilhões da escravidão, a comunidade negra
tem até hoje sua afetividade negligenciada. Era improvável amar num tempo em
que as mulheres negras escravizadas eram estupradas por seus senhores e os homens chicoteados para
trabalharem sem parar. Dor que virou samba, atravessou gerações e derrama
lágrimas perenes.
“Tristeza
Quanta
tristeza tenho eu
Só
em saber
Que
vivo longe dos carinhos teus”
Tristeza
- Cartola
Descrição para
cegos: Imagem em preto e branco, close no rosto do sambista Cartola. Eles está
de óculos escuros e sua mão direita segura a haste do óculos, como quem o
colocou há pouco.
Não há como falar em
singularidade no que se refere ao samba, pois são muitas origens. Assim como os
povos africanos são de culturas diversas, as misturas que foram feitas quando
os batuques aqui chegaram também foram muitas, assim, é de se esperar que não
seja um produto cultural, e sim produtos. O samba de roda, samba-enredo, samba
reggae, samba-canção, samba rock e muitos outros. No entanto, sabe-se que a
indústria cultural tende a assimilar o que vê como rentável, e quando não tem
sucesso, descarta tal ritmo e cria uma associação negativa acerca do mesmo.
Quando levado ao cenário internacional, o samba de roda sofreu higienismo,
ganhou uma corporeidade melódica e artistas ligados a elite boêmia do Rio de
Janeiro passaram a ser postos como estrelas do gênero musical.
Porém, é importante explicitar
que a roda de samba, em sua gênese, é um espaço de resistência. Momento
sagrado, onde as manifestações de fé se elucidam e a sensibilidade de um povo é
aflorada por meio do corpo em movimento e a sonoridade que levava embora, por
um tempo, as mazelas do período escravagista. As raízes têm que ser
preservadas, não em negação ao novo, mas como forma de respeito ao passado de
luta do povo preto, e de como o samba é parte necessária para contar a história
de enfrentamento aos costumes normativos do sistema opressor.
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