sábado, 6 de abril de 2019

O samba dos morros que a elite usurpou

Descrição para cegos: A imagem mostra uma roda de samba. No ambiente as paredes são pintada de amarelo,  possue berimbaus e a bandeira do Brasil pendurada. No centro da roda, uma mulher negra vestida de branco dança, e em sua volta mulheres batendo palmas e homens sentados tocando instrumentos. 


Por Ana Beatriz Rocha


“Quem não gosta de samba, bom sujeito não é
É ruim da cabeça, ou doente do pé”

       Dentre os diversos estereótipos que a comunidade internacional limita aos brasileiros, um bem marcado é o samba. Apontado como constitutivo da identidade nacional, o ritmo carrega consigo a mais pura originalidade brasileira, pois foi em solo tupiniquim que nasceu esse marco cultural que vai além da conhecida sonoridade.

       Em tempos onde a escravidão ainda era plano de fundo da história do país, através dos africanos escravizados no Brasil, um novo gingado surgia. A Bahia foi o berço do ritmo que veio dos batuques e do jongo, trazidos de Angola e do Congo pelos negros que foram covardemente arrancados de seus países para serem subjugados no Brasil. Com influência de elementos religiosos, tinha origem numa comunicação ritualística, onde cultura e espiritualidade se fundiram numa cadência poética que geraria o mais famoso ritmo musical brasileiro.

“Somos herança da memória
Temos a cor da noite
Filhos de todo açoite
Fato real de nossa história”
Identidade - Jorge Aragão

       O mais tradicional é o samba de roda, que num misto de palmas, coro e instrumentos de percussão fez surgir um som divertido e dançante, onde um círculo de instrumentistas homens se abria em volta de uma mulher que dançaria e trocaria seu protagonismo com as outras que da roda faziam parte.


       No século 19, após o Rio de Janeiro ter se tornado capital do Brasil, muitos africanos escravizados foram mandados da Bahia, e de outros lugares do país, para a então capital, devido às reconfigurações econômicas que a mudança desencadeou. Com isso, havia um aglomerado de religiões iorubás num só lugar, e ao batuque foi se incorporando o maxixe e a polca, dando origem às conhecidas rodas de samba dos morros cariocas. Após a invenção do rádio, em meados da década de 1920, o samba chegou às elites do Rio. Com isso, ele foi assimilado pela indústria fonográfica e por artistas brancos de muito longe dos morros.

       É comum citarem nomes como Noel Rosa e Beth Carvalho para lembrar do samba, mas é na memória de Cartola, Nelson Cavaquinho e Pixinguinha e, na contemporaneidade, Alcione, que as raízes dos morros pretos são ressaltadas e os muitos sambas, que não vieram de um só lugar, são tocados como se ainda estivessem em casa. A mãe África, genitora do balanço envolvente que deu vazão a pluralidade nos saúda quando o sambista de melanina acentuada dá o primeiro repique, reverenciando seus ancestrais.

       Os batuques saudaram Cartola, morador do Morro da Mangueira e compositor do primeiro samba-enredo da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, “chega de demandas”. Muitos dos seus sambas cantam a dor de um amor naufragado, o amor preto que não vingou. Não foi uma sina só de Cartola retratar tal dor em suas letras, e essa narrativa ainda emociona por ser tão cotidiana nos dias atuais. Devido ao fato de terem tido as constituições amorosa e familiar ceifadas pelos grilhões da escravidão, a comunidade negra tem até hoje sua afetividade negligenciada. Era improvável amar num tempo em que as mulheres negras escravizadas eram estupradas por seus senhores e os homens chicoteados para trabalharem sem parar. Dor que virou samba, atravessou gerações e derrama lágrimas perenes.

“Tristeza
Quanta tristeza tenho eu
Só em saber
Que vivo longe dos carinhos teus”
Tristeza - Cartola


Descrição para cegos: Imagem em preto e branco, close no rosto do sambista Cartola. Eles está de óculos escuros e sua mão direita segura a haste do óculos, como quem o colocou há pouco.


       Não há como falar em singularidade no que se refere ao samba, pois são muitas origens. Assim como os povos africanos são de culturas diversas, as misturas que foram feitas quando os batuques aqui chegaram também foram muitas, assim, é de se esperar que não seja um produto cultural, e sim produtos. O samba de roda, samba-enredo, samba reggae, samba-canção, samba rock e muitos outros. No entanto, sabe-se que a indústria cultural tende a assimilar o que vê como rentável, e quando não tem sucesso, descarta tal ritmo e cria uma associação negativa acerca do mesmo. Quando levado ao cenário internacional, o samba de roda sofreu higienismo, ganhou uma corporeidade melódica e artistas ligados a elite boêmia do Rio de Janeiro passaram a ser postos como estrelas do gênero musical.

      Porém, é importante explicitar que a roda de samba, em sua gênese, é um espaço de resistência. Momento sagrado, onde as manifestações de fé se elucidam e a sensibilidade de um povo é aflorada por meio do corpo em movimento e a sonoridade que levava embora, por um tempo, as mazelas do período escravagista. As raízes têm que ser preservadas, não em negação ao novo, mas como forma de respeito ao passado de luta do povo preto, e de como o samba é parte necessária para contar a história de enfrentamento aos costumes normativos do sistema opressor.




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