Por Ana Beatriz Rocha
Os tempos atuais estão marcados pelo que muitos chamam de “levante das minorias”, algo comparado a uma Hidra de Lerna (ser da mitologia grega), que após ter uma de suas cabeças cortadas, muitas nascem no lugar, mais fortes e vociferantes. Isso não se dá sem razão, muitos grupos foram silenciados e apagados da história contada nas escolas, na mídia e nas rodas de conversa da sociedade. Um desses grupos são os indígenas, os povos nativos do Brasil, os reais donos e cuidadores da nossa terra tiveram suas narrativas distorcidas, e inúmeras tentativas de dizimá-las.
Segundo o último censo do IBGE, em 2010, o Brasil possui cerca de 817.000 indígenas. Após tantos anos, é inegável que esse número está obsoleto, e que seja bem maior agora. Surpreendentemente, há quem ache que toda essa população se encontra exclusivamente nas matas do país, pois o imaginário coletivo foi educado para crer que “lugar de índio é no mato”. Porém, não há o mínimo de sentido nessa afirmativa. A evolução civilizatória confere muitas mudanças as construções de sociedade, em comparação ao início do processo.
De acordo com o último Censo da Educação Superior, divulgado pelo Ministério da Educação em 2017, o Brasil conta com cerca de 49.000 indígenas nas instituições de ensino superior públicas e privadas. O número ainda é baixo, mas em comparação com censos anteriores o avanço é considerável. A inserção de indígenas na educação superior é uma quebra intensa de estereótipos, mas ela só é possível se as políticas públicas viabilizarem formas disso se concretizar, pois tal acesso é difícil para grupos não privilegiados.
O escritor e professor Daniel Munduruku deixou explícito “posso ser quem você é sem deixar de ser quem eu sou”. Ele se refere a noção preconceituosa de que os povos nativos não podem usufruir dos avanços tecnológicos ou ocupar espaços como o mercado de trabalho, e deixa nítido que ser influenciado pela globalização não retira do indígena sua essência, tampouco lhe descaracteriza enquanto comunidade.
Novo ambiente, novas descobertas
Os corredores das universidades públicas do país costumam ser vistos como ambientes plurais, especialmente os centros de ciências humanas. As misturas se devem aos diferentes grupos de pessoas que ali passam, vindo de localidades distintas e de contextos, por vezes, opostos. É perceptível, aos menos para mim, que aqueles rostos carregam uma vasta bagagem sociocultural, e silenciada nesses espaços. Me refiro não apenas aos traços físicos, mas a postura e voz que tiveram que assumir num ambiente branco e elitista como a academia. Os rostos em questão são o de Ozivan e Pamela, eles têm 19 anos, ambos estudantes do quarto período de Serviço Social na Universidade Federal da Paraíba. Porém, as similitudes não acabam na sala de aula compartilhada, eles são indígenas da etnia Potiguara, e carregam pelos tais corredores todas as subjetividades que a origem lhes concedeu.
Foi próximo a capital paraibana, a cerca de 84 km de João Pessoa, que nasceram e foram criados. Os jovens são de Baía da Traição, onde cerca de 90% do município está dentro de reservas indígenas dos Potiguaras. A vivência cotidiana com seu povo lhes conferiu uma permanente sensação de pertencimento, na escola ser indígena não era motivo de piadas, ou curiosidade, pois lá as crianças eram em sua maioria do mesmo grupo étnico. Era comum, para Ozivan, falar sobre seu tronco familiar com os colegas enquanto estudavam, um compreendia o outro e partilhava vivências ligadas aos costumes culturais.
Na cidade grande o encanto teve um fim, os olhares não se encontram como antes, tampouco os diálogos se completam da mesma forma. Atualmente o debate sobre identidade vem se fazendo presente em diversas circunstâncias, isso se dá pelas discussões acerca da especificidade que cada grupo social carrega consigo. Era difícil pensar em ter que se afirmar algo quando ao seu redor as pessoas sabiam de onde você vinha, e dividiam um chão histórico repleto de luta, resistência e ensinamentos que valem mais que toda terra que os tiraram. Mas ao vir para universidade, Ozivan notou que ali ele precisaria tomar o seu lugar como indígena, até mesmo para combater o silenciamento do seu povo.
Descrição para cegos: Ozivan aparece de perfil, sorrindo. Ele usa aparelhos, tem barba e está com uma regata colorida clara, e um cordão de material artesanal. Sentado apoiado numa mesa em mosaico branco.
Foto: Ana Beatriz Rocha
O jovem foi pego de surpresa ao notar que ali, tão perto de casa, as pessoas falavam de povos indígenas de modo tão distante e folclorizado. Por vezes, parecia que a história que ele viveu era ilusória aos olhos de muitos, e que a naturalidade com que ele habita diferentes espaços apenas por ser tão gente como qualquer outro, é visto como peculiaridade enquanto questionam se índios não deveriam estar sempre nas reservas. O mundo branco clareou as ideias, folclorizou nossos povos nativos, embranqueceu as peles numa miscigenação genocida e, por fim, não nos contaram a real história. Crescemos imersos numa falsa democracia racial, onde dizem ter lugar para todos enquanto limitam os acessos às posições de poder e impacto social.
Saber quem é
Quando criança, Pamela via seus pais sempre envolvidos nas lutas do movimento. Embora não tenha se envolvido tanto quanto eles, respirar essas temáticas dia e noite lhe fez ver a questão como central, e se decepcionar perante o apagamento do seu povo que notou ao ir para a universidade. O mais triste foi ver que muitos companheiros da Baía não se assumiram enquanto indígenas quando chegaram na capital, a jovem refletiu sobre como a ancestralidade que para ela era alicerce poderia ter sido escanteada. No entanto, ela explica isso como mais uma sequela das violências contra seu povo, e como o complexo de vira-lata cultivado pelo Estado desde a gênese do Brasil, pode fazer alguns jovens nativos negarem suas raízes para se sentirem aceitos. E, assim, afirma a necessidade dos diálogos com a juventude indígena, para que a identidade cultural não se perca nos limítrofes da globalização.
Um dos pontos de encontro nas percepções destes jovens é o senso de coletividade que há nas comunidades, a construção afetiva por meio do cuidado que uns têm com os outros, a constituição familiar que a proximidade cultural os confere. É cabível falar em proteção, essa que ultrapassa a terra e chega nas pessoas.
Quando questionada sobre ser mulher na comunidade, a tímida Pamela comentou sobre tal proteção, ainda que o machismo seja presente devido ao quão incrustado ele é, ela conta que as mulheres são muito ouvidas lá, que existem várias que são símbolo de força para seu povo. Notoriedade que falta do lado de cá. Além disso, a jovem traz relatos surpresos sobre os níveis de assédio que encarou na cidade grande, pois em sua terra natal a concepção de coletividade gera uma proteção que poucos entendem na aceleração do mundo pós globalização.
Descrição para cegos: Pamela está sorrindo, cabelos presos, usa um óculos de grau preto e grandes brincos de argola. A moça está de frente, com uma camiseta preta de listras brancas.
Foto: Ana Beatriz Rocha
E se eu não for - apenas - o que você pensa?
Os tempos modernos acentuaram um antigo costume humano, o julgamento. As multitelas e suas demonstrações distorcidas de quem somos torna mais fácil o cotidiano de quem se diverte tentando encaixar o outro em caixinhas. Assim surgem os estereótipos, como forma de ignorar a subjetividade de cada um, englobamos alguns grupos com características, por inúmeras vezes limitantes e preconceituosas.
Para os estudantes, o problema é que as pessoas reduzem o indígena a uma mera imagem. Pamela e Ozivan explicitam que os grupos étnicos não são homogêneos, que quer sejam os traços ou os costumes, eles serão diversos, a depender da localidade. Os povos do litoral tiveram contato mais imediato e próximo com o colonizador, logo, os estupros contra as mulheres indígenas geraram uma forte miscigenação que deixou para trás muitos traços físicos daquele povo nativo.
Porém, não contam essas histórias na mídia, ou nas escolas, o que fez com que muitos estereótipos fossem criados em volta do povo indígena. É comum relatos de jovens indígenas que dizem serem questionados por usarem smartphones, ou reduzirem suas habilidades a pesca, caça e curandeirismo. A partir disso, Ozivan levanta a importância do debate nas escolas, “Eu questiono o sistema educacional da nossa região, pois se a imagem de indígena que passam na escola aqui em João Pessoa é ligada a amazônia, por que não se lembrar que temos comunidades indígenas próximas?”, disse o jovem.
Tais estereótipos, juntamente com a falta de representatividade nos espaços de poder, dificultam a criação de políticas públicas que viabilizem a inserção dos jovens nativos nas universidades e no mercado de trabalho, gerando uma persistente hierarquização que põe sempre os integrantes do grupo em posições de inferioridade.
Lutas futuras
Foi no intuito de ultrapassar esses obstáculos e expandir o pertencimento para universidade que foi desenvolvido o COINPO, o Coletivo Indígena Potiguara. Ele nasceu a partir de estudantes do GT Indígena, um grupo de trabalho que visa encurtar as distâncias entre indígenas de diferentes centros dentro da universidade. No momento, o projeto conta com dezesseis integrantes, e embora seja um grupo que se impõe com força para alcançar os espaços que lhes são de direito, é inegável que ele pode crescer. No entanto, os estudantes enfrentam dificuldades, pois a instituição não disponibiliza dados sobre os alunos indígenas, e o trabalho de formiguinha protela algo que poderia gerar melhorias no cotidiano.
Descrição para cegos: Jovens indígenas em um encontro do COINPO. Ozivan e Pamela usam camisetas com a frase: democracia é demarcar todas as terras indígenas e estão com dois colegas, um rapaz e uma moça. Todos estão sorrindo.
Foto: Lana Vieira
Por meio da partilha de experiências veem que um dos principais objetivos é a luta pela bolsa permanência, para que o benefício não seja cortado. A bolsa, que é um programa que atende a estudantes indígenas e quilombolas de instituições de ensino superior, permite que eles tenham condições de se manter estruturalmente em João Pessoa, precisam do suporte para lidarem com a dinâmica da capital, que é bem diferente da Baía da Traição. Eles veem a entrada na universidade como uma forma de retornar a comunidade como profissionais aptos a atuar nela e por ela.
Espelhos
Ao longo da história, determinadas conquistas só foram possíveis pois os núcleos que era vítimas de injustiças ou ausência de direitos lutaram para que mudanças acontecessem, seja um enfrentamento real ou no campo das ideias. A luta indígena já foi apenas um enfrentamento físico pela proteção das terras, e ainda que em algumas localidades do país esses povos ainda tenham que arriscar suas vidas para garantir seu espaço, a principal luta hoje é no campo político. Assim, é evidente a importância da representatividade de pessoas indígenas na política, como o caso da candidata a vice-presidência pelo PSOL em 2018, Sônia Guajajara.
“Eu acho que a representatividade dessas minorias sociais precisam ser cada vez maiores, pois não dá pra você se identificar com aquilo que uma pessoa branca está pedindo, porque o que ela vê como necessidade é totalmente diferente do que nós vemos como necessidade”, diz Pamela.
Seja para reivindicar as reais especificidades do povo indígena, ou para mostrar à juventude que é possível alçar voos, ainda que o contexto social imponha obstáculos, é irrefutável que os próximos anos precisam trazer debates sobre diversidade de grupos étnicos entre os candidatos nos cargos políticos mais importantes do país. Na universidade ou no Congresso Nacional, os povos nativos chegaram com muita luta, e se depender do empenho do movimento, as boas estatísticas só tendem a inflar.